Baião, PA
Queima de arquivo de trabalhadores 'que sabiam demais': os seis mortos da Chacina de Baião
Por Daniel Camargos
Em um intervalo de poucas horas, pistoleiros contratados por um fazendeiro executaram seis pessoas no interior do Pará. Entre elas, três funcionários do mandante do crime e uma ativista; em comum, o fato de conhecerem de perto os crimes do dono da propriedade
Raimundo, Marlete e Venilson ameaçaram reclamar por terem de trabalhar em uma fazenda sem salário nem dignidade – o banheiro que usavam era um barraco de madeira sem vaso sanitário, só com um buraco no chão, e para tomarem banho precisavam ir a um riacho. Mas o preço que pagaram por não aceitarem a exploração em condições análogas à escravidão foi a morte. Foram assassinados, em uma noite de terror em que pistoleiros contratados mataram ainda outras três pessoas, no que ficou conhecido como a Chacina de Baião.
Fernando Ferreira Rosa Filho, conhecido como Fernandinho, o dono da propriedade, foi o mandante do crime ocorrido na cidade paraense de Baião, próximo à represa de Tucuruí, de acordo com o Ministério Público Estadual e a Polícia Civil. O fazendeiro teria se irritado com as queixas dos funcionários e mandado matá-los. Os trabalhadores haviam dito que, se não recebessem, iriam denunciar Fernandinho – que tinha um histórico de não pagar funcionários, segundo testemunhas. “Quem reclamasse, ele mandava embora e ameaçava”, disse uma delas.
As mortes começaram na noite de 21 de março de 2019, quando os pistoleiros foram até a fazenda de Fernandinho, localizada em uma estrada vicinal da rodovia Transcametá (BR 422) e executaram – com tiros na cabeça – Raimundo Jesus Ferreira, Marlete da Silva Oliveira e Venilson da Silva Santos. Os assassinos então empilharam e queimaram os corpos, até serem carbonizados.
E essa foi apenas a primeira parte da Chacina de Baião.
A segunda aconteceu poucas horas depois, quando os mesmos capangas de Fernandinho foram matar Dilma Ferreira de Souza, que vivia em um assentamento próximo à propriedade do fazendeiro e era uma das coordenadoras do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). Os pistoleiros chegaram de moto na mercearia de Dilma. Pediram uma bebida e, em seguida, a executaram, assim como o seu marido, Claudionor Amaro Costa da Silva, e um amigo do casal que também estava no local, Milton Lopes. Todos mortos a facadas.
Pistoleiros foram até a fazenda de Fernandinho e executaram – com tiros na cabeça – três trabalhadores. Os assassinos então empilharam e queimaram os corpos, até serem carbonizados.
Presos, foragidos e mortos
As duas partes da chacina estão ligadas por um emaranhado de violência que envolve tráfico, extração ilegal de madeira, queima de arquivo, tentativa de incriminar trabalhadores rurais e, claro, o conflito por terra.
O motivo mais evidente do assassinato de Raimundo, Marlete e Venilson foram as queixas sobre as condições de trabalho. De fato, os auditores fiscais do trabalho que inspecionaram a fazenda após as mortes só não consideraram a condição dos três análoga à escravidão devido à ausência de depoimento deles. Mas deixaram claro no relatório que, se tivessem sido ouvidos, “poderiam demonstrar a ocorrência de trabalho escravo”. Os trabalhadores também não eram pagos e eram completamente informais, sem registro nenhum.
Uma pessoa próxima a Venilson contou que ele relatava falta de comida, pois o patrão não ia à fazenda levar alimentação para os trabalhadores. Um familiar de Marlete contou que sabia que Fernandinho “não é boa bisca” e que ameaçava e não pagava os trabalhadores. “Depois dizia que não devia nada e ameaçava quem ia cobrar.”
Mas outro motivo por trás dos assassinatos seria o fato de que os trabalhadores sabiam de diversos crimes cometidos por Fernandinho. “Eles teriam percebido e comentado na região que Fernandinho seria integrante de facção criminosa e que estaria traficando drogas”, aponta o MP, baseado em um relatório produzido por auditores-fiscais do trabalho.
“Ao saber que seus trabalhadores estariam falando demais, o fazendeiro teria mandado executá-los como forma de ‘queima de arquivo’”, afirma a denúncia feita pelo promotor de Baião, Márcio de Almeida Farias.
Conflito com sem-terra
Outro ponto levantado pelo MP e pela polícia era o conflito de Fernandinho com moradores de uma ocupação próxima à sua fazenda. Segundo o inquérito, ele estava construindo uma pista de pouso clandestina em uma estrada que passava dentro de sua propriedade. A pista seria usada, segundo depoimentos colhidos pela polícia, para receber drogas.
A estrada, porém, era usada constantemente por cerca de 70 famílias, por ser o único trajeto possível até o acampamento Nova União. O fazendeiro trancou a passagem com uma porteira, corrente e cadeado e ordenou que seus
funcionários, entre eles justamente Raimundo e Venilson, impedissem a passagem dos sem-terra.
Fernandinho queria, segundo as investigações, inflamar essa tensão entre os trabalhadores de sua fazenda e os sem-terra. Assim, ao planejar a morte dos três funcionários, sua intenção era incriminar os sem-terra, usando o pretexto de que já haveria um conflito entre eles. Não funcionou.
A Repórter Brasil entrevistou um dos sem-terra, que chegou a ser baleado quando tentava passar na estrada. “Na hora que parei veio um rapaz de capuz e deu um tiro de espingarda e depois vários tiros de [revólver calibre] 38. Furou meu pescoço, fraturou três costelas e perfurou meus dois pulmões”, conta.
Veio um rapaz de capuz e deu vários tiros. Furou meu pescoço, fraturou três costelas e perfurou meus dois pulmões
Sem-terra que estava com a esposa e dois filhos
Ele estava com a esposa e os dois filhos, uma criança de 9 e outra de 2 anos. Dava carona também para um casal, que estava com uma criança de 2 anos. “É uma coisa muito forte. A família fica abalada. A bala ficou alojada [no meu corpo] e tenho febre direto”, conta o sem-terra. “O que nos resta é pedir a Deus, pois o cara mata, vai preso e depois é solto.”
O acampamento Nova União não é vinculado a nenhum movimento social. No início da ocupação, em 2016, teve ligação com a Frente Nacional de Lutas no Campo e na Cidade (FNL), mas atualmente as 70 famílias atuam de forma independente.
Queima de arquivos
Além de serem tratados como escravos, Raimundo, Marlete e Venilson sabiam demais sobre o lado traficante de Fernandinho e foram executados. Na segunda parte da chacina, Dilma também foi morta como "queima de arquivo", mas por conhecer a ligação do fazendeiro com extração ilegal de madeira. Os caminhões carregados de toras danificavam as estradas usadas pelos moradores do assentamento onde Dilma vivia. Ela ameaçou denunciar a atividade ilegal para as autoridades ambientais.
“Fernandinho também resolveu encomendar a morte da ativista de movimentos sociais, a qual era chamada pelos criminosos de ‘presidente do mato’”, segundo a denúncia. Para o MP, Fernandinho dominava a região prestando apoio logístico às ações criminosas do tráfico de drogas na região, extraindo madeira ilegalmente e grilando terras. “Era muito temido, andava armado e tinha capangas", afirma o promotor.
O advogado de Fernandinho, Cândido Lima Júnior, levou à família do réu as perguntas da Repórter Brasil, mas ambos não quiseram conceder entrevista.
Essa dor nunca vai acabar. Foi uma injustiça grande demais. Quero que eles paguem pelo que fizeram
Francisca Silva Quadros, irmã de Dilma
Pouco mais de três meses após a chacina, o Ministério Público Estadual e Polícia Civil apresentaram uma denúncia, em que sete pessoas foram acusadas: o fazendeiro, dois intermediários e quatro pistoleiros. Fernandinho e outros três estão presos – um dos pistoleiros está foragido. Já outros dois, que chegaram a ser indiciados, foram mortos durante uma operação policial em Marabá (PA).
Liderança nata
Dilma saiu de Barra da Corda, no Maranhão, em direção a Tucuruí, no Pará, quando a usina hidrelétrica estava na segunda fase de obras, no fim da década de 1990, atraindo trabalhadores de todo o Brasil, principalmente do Nordeste.
Ela participou da ocupação de um bairro chamado Palmares e, com o tempo, integrou-se ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), chegando a ser uma das coordenadoras. “Ela se destacou pela liderança e pela forma de organizar o povo”, afirma Roquevan Alves, coordenador do MAB em Tucuruí.
“Essa dor nunca vai acabar. Foi uma injustiça grande demais. Quero que eles paguem pelo que fizeram”, afirma a irmã de Dilma, Francisca Silva Quadros. A irmã sente saudade dos domingos que passavam juntas, preparando galinha caipira e planejando o futuro. “A gente chora só de lembrar”, diz.
O coordenador do MAB lembra que Dilma era contundente, principalmente quando defendia as mulheres. “Virou uma militante amada por todo o movimento”, afirma. Em 2010, ela participou da ação que ocupou uma área rural batizada de Salvador Allende – homenagem ao chileno que foi o primeiro socialista eleito na América Latina –, justamente a área onde foi assassinada.