Guaíra, PR
Morto a pedrada: racismo, ódio e crueldade marcam assassinato de indígena no Paraná
Por Diego Junqueira
Avá-guaranis relatam onda de discriminação e violência contra indígenas no oeste do Paraná. Insegurança gira em torno de Terra Indígena cuja demarcação foi paralisada pela Justiça após pedido de prefeituras e empresários locais
Briga de bar. No oeste do Paraná, essa costuma ser a justificativa da polícia para os assassinatos dos Avá-guarani. Foram quatro em uma década. Os indígenas, porém, contestam esse argumento e dizem que a raiz do problema são as constantes agressões que sofrem, em razão de ódio e preconceito de parte da população local. Sentem-se tratados como cidadãos de segunda classe, numa região onde proprietários rurais, políticos e prefeituras se uniram contra eles – e onde seus assassinos continuam soltos.
Um traço comum desses assassinatos é a crueldade. Demilson Ovelar Mendes, de 21 anos, foi morto a pedradas em novembro de 2019, após discussão em um bar de Guaíra, cidade na fronteira com o Paraguai e o Mato Grosso do Sul. Seu corpo foi encontrado a um quilômetro dali, em uma plantação de soja. O jovem Avá-guarani, que andava de muletas, vivia na terra indígena Tekoha Guasu Guavirá, cuja demarcação se arrasta há 11 anos e está paralisada pela Justiça, após contestação de proprietários rurais e das prefeituras de Guaíra e da vizinha Terra Roxa.
“Ele discutiu no bar, levou uma pedrada e morreu”, resume o promotor Marco Felipe Torres Castello, do Ministério Público do Paraná. “Foi um homicídio comum, sem motivação de conflito de terra”, diz Castello, que põe a culpa em “alcoolismo” e “drogadição”.
A Polícia Civil também diz que o assassinato não tem relação com disputa fundiária. Segundo a assessoria de imprensa, o assassino teria se vingado de Demilson por um suposto furto de um narguilé. A polícia levou mais de um ano para concluir o inquérito, que apontou o envolvimento de um adolescente e um adulto no crime. O jovem foi apreendido de forma provisória por 45 dias. O adulto não foi preso. O delegado de Guaíra, João Paulo Menuzzo, não atendeu aos pedidos de entrevista da Repórter Brasil.
A situação é tensa, porque tem a população e o poder público contra os indígenas
Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
Lideranças Avá-guaranis contestam as investigações oficiais, alegando que elas ignoram a onda de discriminação contra indígenas no oeste do Paraná. "A comunidade não está satisfeita com essas notícias, porque os suspeitos estão soltos", diz Alaudio Ortiz Velásques, cacique da aldeia onde Demilson vivia.
A impunidade se torna, assim, outra marca nos assassinatos de indígenas em Guaíra. Uma marca que remonta a casos antigos, como o de Bernardino Goulart, morto com três tiros em um bar em 2013, por supostamente ter pegado a cerveja de outra pessoa. Oito anos depois, continuam soltos seus assassinos. “Fazem parecer briga de bar, mas a gente sabe que o ódio existe. O histórico de violência aqui é antigo e envolve a luta pela terra”, afirma o cacique Ilson Soares. Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), concorda que as ameaças são constantes: “A situação é tensa, porque tem a população e o poder público contra os indígenas.”
Disputa pela terra
A insegurança narrada pelos caciques e por Osmarina gira em torno da TI Tekoha Guasu Guavirá, uma área de 24 mil hectares ainda não demarcada, nas cidades de Guaíra, Altônia e Terra Roxa, onde vivem cerca de 1.300 indígenas. O território abarca também 165 propriedades particulares, fato que incendiou a população local contra a demarcação.
Seja pela Guerra do Paraguai (1864-1870) ou pela construção da usina de Itaipu (1975-1982), os Avá-guaranis tiveram suas aldeias destruídas e acabaram muitas vezes sendo explorados, principalmente nas lavouras de erva-mate. E então, quando deram início às ações de retomada de suas terras originais, na década de 1980, passaram a ser chamados de “paraguaios” e “invasores” pela população. A violência se intensificou ainda mais a partir de 2009, segundo as lideranças, quando começaram os estudos da Funai para demarcação da área.
Desde então, ruralistas e políticos realizam campanhas de difamação em rádio, internet e nas ruas. “Invasão indígena não combina com ordem e progresso", “Fora Funai” e “Direito à propriedade” são algumas das faixas que passaram a ser vistas em Guaíra, conta Soares. A campanha anti-indígena é liderada pela Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), formada por empresários e ruralistas e com apoio de políticos locais, como prefeitos. A organização foi procurada, mas não se manifestou.
Segunda onda de violência
Uma decisão da Justiça em 2020 anulou a demarcação das terras e agravou ainda mais a situação dos indígenas. E uma segunda onda de violência na região, após a morte de Demilson, escalonou para mais um Avá-guarani assassinado. A facadas. O motivo? Supostamente teria urinado na frente de uma casa após sair de um bar. Novamente, o bar, a crueldade e o aparente motivo fútil. Mas, desta vez, os assassinos foram presos.
Os conflitos de preconceito com relação a minorias têm que ser analisados pelos órgãos de atendimento ao indígena, para evitar esse tipo de confronto, que é latente. A intolerância, né.
“Crime bárbaro e desproporcional. Mas foi uma questão pontual. Procuramos saber se haveria algum tipo de conflito étnico, uma rivalidade entre brancos e índios, mas a gente não verificou isso”, afirma o delegado Geraldo Evangelista, responsável pelo caso. “Pode haver algum tipo de intolerância, mas quando um crime como esse chega na delegacia, é o último estágio. Tudo o que vem antes disso, a polícia não tem como avaliar”, diz. “Os conflitos de preconceito com relação a minorias têm que ser analisados pelos órgãos de atendimento ao indígena, para evitar esse tipo de confronto, que é latente. A intolerância, né.”
Para o advogado André Dallagnol, assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, prevalece na região um racismo estrutural, que vê os indígenas como uma sociedade inferior. “O poder público joga tudo na conta do alcoolismo, como se fossem casos isolados. Mas o álcool é uma válvula de escape. E aí, o que fazer?”, questiona. “Sabemos que, sem a terra, eles não conseguem exercer sua espiritualidade, costumes e tradições”, afirma.
Chego a desmaiar de saudade
Mãe de Demilson
A mãe de Demilson não entende até hoje por que seu filho morreu e de forma tão brutal. Cirila Aquino conta que nunca mais se sentiu bem dentro de casa. Às vezes parece esperar pela volta do filho. "Chego a desmaiar de saudade", diz ela, em guarani, traduzida pelo cacique.
No oeste do Paraná, indígenas vêm sendo presos por cortarem bambu para ritual religioso, e até mesmo porque crianças colheram espigas de milho rejeitadas por colheitadeiras, segundo relatos reunidos pela Apib. Esse último caso levou à prisão um cacique, que ficou dois dias detido e ainda responde pelo suposto crime das crianças.
Já os assassinos de Goulart e Demilson continuam soltos.