Enquanto o trabalhador rural sem-terra Sebastião Aparecido de Paula, 70 anos, desmonta sua casa – com lágrimas nos olhos – e coloca telhas e móveis em um caminhão, a empresária Virgínia Tofani Maia conversa amigavelmente com os policiais que acompanham a ação de reintegração de posse da Fazenda Norte América, em Capitão Enéas, no norte de Minas Gerais.
É ela quem confirma à Repórter Brasil que um grupo chamado Segurança no Campo, composto por cerca de 300 produtores rurais da região, conta com a participação do atual secretário de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, o general da reserva Mário Lúcio Alves Araújo. “O general Mário Araújo faz parte do nosso grupo. Ele é o interlocutor”, afirma Maia. “Ele é bem jeitoso para ir lá e conversar.”
Oito meses antes de assumir o comando da secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, o general Mário Araújo participou de uma ação organizada por fazendeiros, em abril de 2018, que impediu integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) de ocuparem a fazenda Bom Jesus, na área rural de Montes Claros. Na ação – realizada sem autorização judicial –, os fazendeiros expulsaram os integrantes do MST, queimaram a bandeira do movimento, bloquearam os acessos e impediram a entrada de água e alimentos, além de ameaçarem as famílias sem-terra. Após o ato, o grupo Segurança no Campo foi denunciado à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais como sendo uma milícia rural.
“A milícia rural não teria legitimidade para promover uma reintegração de posse, muito menos sem ordem judicial”, afirma denúncia assinada por 30 entidades, incluindo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG (Ordem dos Advogados do Brasil), o MST e organizações sindicais. Consta, na denúncia, uma fotografia do general Mário Araújo conversando com policiais durante a ação.
Além do episódio com a presença do general, o Segurança no Campo participou de outras ações semelhantes, chegando a fazer duas emboscadas armadas contra trabalhadores rurais sem-terra em 2017 e 2018. Ambas na fazenda Norte América – onde Sebastião de Paula e outras dezenas de famílias foram despejadas em dezembro do ano passado.
Além do episódio com a presença do general, o grupo Segurança no Campo fez duas emboscadas armadas contra trabalhadores rurais sem-terra
Um novo ataque ocorreu, dessa vez no estilo “Cavalo de Tróia”, em março de 2018, quando a coordenação do acampamento deixou de ser do MST e passou para a Frente Nacional de Lutas no Campo e na Cidade (FNL). Um caminhão com carroceria do tipo baú entrou no acampamento, com o argumento de que iria buscar móveis e ração. Quando a porta da carroceria foi aberta, saíram 20 homens armados, que atiraram contra os acampados. Um sem-terra foi baleado e outros cinco ficaram feridos.
A Polícia Civil investigou o caso e apontou Leonardo Andrade, ex-secretário da prefeitura de Montes Claros, como o mandante da ação. Ele chegou a ser considerado foragido. Outras 12 pessoas foram presas, entre eles o advogado e a gerente da fazenda. Andrade havia sido preso em 2016, no escopo da operação Catagênese, acusado de irregularidades com recursos públicos e ficou 35 dias na prisão, saindo após determinação do STF (Supremo Tribunal Federal).
‘Tentamos apaziguar’
Na mesma fazenda palco das emboscadas, onde em dezembro do ano passado aconteceu a ação de despejo das famílias sem-terra –, Virginia Maia representava os interesses de Leonardo Andrade.
Questionada pela Repórter Brasil se o Segurança no Campo é uma milícia, ela respondeu: “Nunca. Não tem uma arma. Muito antes pelo contrário.” Segundo Maia, o grupo “nunca usou um porrete”. Ela explica que os fazendeiros vão para as ações carregando a bandeira do Brasil, vestindo uma camisa com o nome do grupo e fazem a proteção somente com o corpo. “Tentamos apaziguar”, afirma.
A respeito dos atos violentos que já ocorreram na fazenda Norte América, Maia afirma que não teve participação e que somente acompanhou os desdobramentos pela cobertura da imprensa. “O proprietário aqui teve um prejuízo irrecuperável”, afirma. “O que aconteceu [ataques aos sem-terra] foi uma reação contrária da outra parte”, justifica.
Leonardo Andrade disse à Repórter Brasil que estima prejuízo de R$ 7 milhões com as ocupações. A maior parte, segundo ele, foi causado após a segunda ação, comandada pela FNL. “Quando eles chegaram parecia um assalto a banco de tanto armamento que tinham”, afirma. Andrade diz que pulou a janela e fugiu, pois estava debilitado por causa de um tratamento de câncer.
Para o coordenador da FNL no norte de Minas, Geraldo Pires de Oliveira, há um alinhamento de toda polícia com os fazendeiros
Segundo ele, 12 bois foram mortos e outros 300 roubados; 70 vacas leiteiras tiveram a ordenha interrompida por uma semana e morreram. Outras 65 vacas perderam valor, pois as tetas pararam de ordenhar. Ele afirma que os sem-terra foram cruéis com animais e atiraram na cabeça de uma égua premiada e cortaram os pés de um burro.
Sobre os dois ataques aos sem-terra que ocorreram na fazenda, Andrade diz que não estava no local. O primeiro ataque ele atribui a uma “reação normal” dos funcionários que atiraram ao ver os trabalhadores rurais sem-terra caminhando em direção à sede da fazenda. Sobre o segundo ataque, executado no estilo “Cavalo de Tróia”, Andrade nega que tenha ocorrido.
Questionado sobre o seu pedido de prisão pós ataque, Andrade diz que foi uma injustiça cometida por policiais civis. Ele entende que havia uma ligação dos policiais civis com deputados petistas da região e que foi perseguido politicamente. “A Polícia Civil era servil em relação ao PT”, afirma.
O coordenador da FNL no norte de Minas, Geraldo Pires de Oliveira, nega que os acampados tenham usado armas, atacado e ferido os animais da fazenda. Oliveira entende que há um alinhamento de toda polícia com os fazendeiros. “Não temos dúvida do que representa o latifundiário arcaico, que pensa em resolver tudo na bala, como é o problema do norte de Minas”, completa.
Colega de Bolsonaro
Tanto a empresária Virgínia Maia quanto o general Mário Araújo foram candidatos na última eleição. Ambos derrotados, ela para deputada estadual e ele para federal. Os dois concorreram pelo PSL, partido que elegeu o presidente Jair Bolsonaro.
Araújo, o secretário do governo de Romeu Zema (Novo), é um antigo conhecido do presidente. Eles estudaram na mesma turma na Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação de oficiais, em Resende (RJ). Uma foto sua circulou pelas redes sociais e grupos de whatsapp do país no final de fevereiro e início de março: é ele o primeiro dos quatro generais cuja foto estampa cartaz produzido por movimentos de extrema direita para convocar a manifestação de 15 de março: “Vamos à rua em massa. Os generais aguardam as ordens do povo. Fora Maia [Rodrigo Maia, presidente da Câmara] e Alcolumbre [Davi Alcolumbre, presidente do Senado]”, afirma o cartaz.
A formação de grupos armados no campo mostra, na opinião do procurador Afonso Teixeira, que o país está retomando situações que já tinham ficado no passado
Convidado pelo governador mineiro para assumir a secretaria de Justiça e Segurança Pública, Araújo tomou posse em janeiro de 2019. Antes de ser secretário e de participar do movimento Segurança no Campo, ele comandou o Estado Maior da 4ª Região Militar, em Belo Horizonte. O general também foi um dos responsáveis pela operação de busca de ossadas dos guerrilheiros do Araguaia empreendida pelo Exército em 2009.
Procurado, Araújo disse que não comentaria “declarações de terceiros”. Em nota enviada pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública, ele não respondeu às perguntas feitas sobre sua participação no Segurança no Campo. Informou apenas que tem “como função zelar pela manutenção da lei e da ordem e trabalhar contra qualquer manifestação de violência, no campo ou espaço urbano, independente de segmento ou classe social”.
Quando a esperança morre
“A formação de grupos armados e de uma defesa ilícita de propriedade do campo é uma tendência”, afirma o coordenador das promotorias de conflitos agrários de Minas Gerais (MP-MG), procurador Afonso Henrique de Miranda Teixeira. Para ele, o país está retomando situações que já tinham ficado no passado. Teixeira analisa que a inviabilização da reforma agrária como política praticada pelo governo federal impede a busca por direitos constitucionais e que a maior violência é “a retirada da esperança de conquistar um espaço para sobreviver.”
Aos 70 anos, Sebastião Aparecido de Paula não imaginava que teria que recomeçar do zero. Depois de anos vivendo e plantando na Fazenda Norte América, não sabe se conseguirá trabalho depois de ser despejado. “A gente tem que ir para cidade. Vou para rua, mas vou ficar contrariado.”
Enquanto desmonta seu próprio barraco, ele lembra de tudo o que colheu ali, inclusive uma abóbora de 24 quilos. “A única esperança que a gente tinha era que podia lutar por um pedaço de terra.”