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Rogério da Conceição agradece ao rio São Francisco não só pelos peixes e pela água. Ele agradece pela própria vida. “Estavam me esperando a 30 metros da beira do rio. Atravessei com o barco para o outro lado e consegui escapar. Graças ao rio São Francisco”, conta um dos líderes da comunidade pesqueira e quilombola de Caraíbas, em Pedras de Maria do Cruz, no norte de Minas Gerais, sobre como fugiu de uma emboscada. Naquele mesmo dia, 22 de outubro de 2014, outra liderança não teve a mesma sorte. Cleomar Rodrigues de Almeida, então coordenador da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), recebeu um tiro de espingarda à luz do dia, quando ia para o acampamento.

Apesar de o assassinato e a emboscada terem acontecido há quase seis anos, a tensão permanece latente na comunidade, onde 26 famílias vivem da pesca e da agricultura familiar. Os moradores temem novos ataques e estão sob a constante ameaça de perderem suas casas e plantações. O medo se intensificou no último ano, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro – que tem discurso contrário aos direitos de indígenas e quilombolas – e com o abandono, por parte do governo federal, dos processos de demarcação das margens do Velho Chico.

As margens dos rios são, segundo lei de 1946, áreas que pertencem à União. Um decreto de 2007 e uma portaria de 2010 do governo federal permitiram que as comunidades tradicionais da região vivam nas margens, também chamadas de ‘áreas de vazante’, terras que ficam banhadas na cheia do rio. Em 2013, moradores de Caraíbas chegaram a obter do governo um Termo de Autorização de Uso Sustentável (Taus), que garante o uso da terra para moradia, pesca e agricultura com a manutenção do bioma natural. Foi quando o conflito com grandes fazendeiros da região se acirrou. Menos de um ano depois mataram Cleomar e tentaram o mesmo com Rogério.

A comunidade, para conseguir a posse definitiva da terra, depende que a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) faça a demarcação das áreas e determine o “tamanho” das margens do Velho Chico, levando em conta a média das últimas cheias. O processo estava em andamento, mas parou em 2018, no governo de Michel Temer. Audiências públicas foram canceladas em cima da hora e os processos de reconhecimento de comunidades tradicionais foram interrompidos.

Servidores de carreira da SPU também passaram a encarar pressão explícita de ruralistas. Eles chegaram a denunciar, em documentos inéditos obtidos pela Repórter Brasil, a pressão feita pela Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) – a bancada ruralista – , para que paralisassem a demarcação no norte de Minas. Os dois órgãos atuaram a pedido de fazendeiros.

A Liga dos Camponeses Pobres denunciou quatro fazendeiros pela morte de Cleomar, mas nenhum foi indiciado pela polícia nem se tornou réu.

CNA e FPA encaminharam ofício ao então presidente Temer, no final de 2018, pedindo a revogação do decreto 6.040 de 2007, que trata da política de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. Quem presidia a bancada ruralista à época e assinou o documento foi a atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina, então deputada federal.

Para a CNA e a FPA, o decreto deixa “margem a várias interpretações que estimulam e culminam em atos que afrontam a ordem e a segurança, além de violarem a garantia constitucional de proteção à propriedade privada e à dignidade humana, imputando aos proprietários rurais a perda de suas terras, de suas produções e de seu sustento familiar”, diz o documento, citando o processo de demarcação nas margens do rio São Francisco.

Servidores da SPU rebateram, em nota técnica, as acusações dos ruralistas. Afirmaram que estavam seguindo a lei. O Ministério Público também se pronunciou, defendendo que o pedido dos ruralistas não fosse atendido. Em nota técnica, procuradores disseram que “constituiria retrocesso” a suspensão das demarcações e “resultaria em graves danos sociais a essa parcela vulnerável da sociedade brasileira”.

A mobilização dos servidores da SPU foi em vão. As audiências públicas seguiram sendo desmarcadas com ordens do comando central da secretaria. Em alguns casos, os servidores estavam na estrada, a caminho das cidades, quando eram avisados do cancelamento.

Em outro ofício interno a que a Repórter Brasil teve acesso, servidores da SPU afirmam que as audiências foram canceladas a pedido de Adriano Pinto Coelho e dos sindicatos dos produtores rurais de Pirapora e Várzea da Palma. Coelho é parte interessada na ação reintegração de posse que culminou na retirada e na destruição das casas de 30 famílias de pescadores da comunidade de Canabrava, em Buritizeiro, descumprindo uma decisão judicial. (leia mais sobre essa história em ‘Venho olhar a água’: os pescadores expulsos das margens do rio ).

Os funcionários da Secretaria de Patrimônio da União também denunciaram a presteza do órgão em atender os pedidos dos ruralistas. “A sequência dos acontecimentos foge à normalidade. Adriano Pinto Coelho enviou mensagem em 4 de abril de 2018 e a audiência foi adiada em 5 de abril”, relataram os servidores. A Repórter Brasil procurou a FPA e a CNA, mas elas não responderam às perguntas enviadas.

Pinto Coelho não quis dar entrevista à Repórter Brasil, mas afirmou, em audiência realizada na Assembleia de Minas Gerais que SPU e Ministério Público atuam de maneira tendenciosa, pois dão atenção a falsas acusações feitas contra ele, enquanto ignoram crimes praticados pelas comunidades que reivindicam as terras (leia mais no capítulo 3 ).

Patrimonialismo arcaico

Pouco antes de morrer, Cleomar estava sendo ameaçado de morte por pistoleiros conhecidos na região, que atuavam a mando de fazendeiros, segundo o advogado Felipe Nicolau, presidente da Associação Brasileira dos Advogados do Povo (Abrapo), que participa como assistente no processo judicial sobre o assassinato.

Hoje, no acampamento em que vivia, na área rural de Pedras de Maria da Cruz (150 km de Montes Claros), cruzes e placas resgatam sua memória – e não deixam os camponeses se esquecerem do conflito que enfrentam há quase quase uma década no norte de Minas. Na porteira do acampamento onde ele foi assassinado, há uma faixa vermelha com letras amarelas: ‘Cleomar vive! Morte ao latifúndio!’

A Liga dos Camponeses Pobres denunciou quatro fazendeiros pela morte de Cleomar, mas nenhum foi indiciado pela polícia nem se tornou réu. Duas pessoas chegaram a ser presas, Marcos Ribeiro de Gusmão e Marco Aurélio da Cruz e Silva, acusados pela polícia de serem os executores, mas ficaram menos de um ano na prisão, pois receberam um habeas corpus. Seis anos depois do assassinato, o crime ainda não foi julgado.

Com a chegada de Bolsonaro ao governo, o processo de demarcação de terras na região foi totalmente paralisado

A região vive um “patrimonialismo muito antigo”, segundo o procurador Edmundo Antônio Dias, do Ministério Público Federal. Para ele, os fazendeiros usam as áreas nas margens do rio São Francisco como se fossem donos, mas não são, pois as terras pertencem à União. O procurador critica a postura do governo federal de permanecer inerte e não demarcar as áreas, além de deixar que os fazendeiros continuem usufruindo da terra. “As comunidades tradicionais têm uma relação de preservação com o meio ambiente. Elas podem viver nessas áreas, pois a finalidade [da demarcação das margens do rio] é preservar o meio ambiente”, afirma Dias.

O resultado é um cenário de medo e ameaças. Quase a metade das lideranças (34 de 72) que estão no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos de Minas Gerais vive no norte de Minas.